sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Intermitências de caleidoscópio



Quando vi você, amei...
Como a criança que ama o doce
exposto na vitrine.
Não pode passar mais um minuto
sem tê-lo!

Quando nos falamos, eu me apaixonei...
Como adolescente que ama o proibido.
Que anseia pela aventura.
Que faz desta paixão o seu
cavalo de batalha...
que amar esse amor é a coisa 
mais importante do mundo!
Que perder esse amor é certeza
de morte!

Quando nos encontramos eu me perdi.
Eu perdi todas as certezas;
Eu perdi todo o senso;
Eu perdi o juízo
e me perdi em você!

A partir de então eu continuo
a criança, a adolescente... a mulher incompleta.
Não há controle nas minhas emoções...
Não se organizam os meus pensamentos...
O que sinto, não há modos de se entender...
O que faço não se explica...
O que falo nem sempre deve ser considerado.

Não sou dona de mim,
Menos ainda das minhas ações,
Não coordeno o que faço,
Menos ainda com você...
Não meço minhas atitudes
quando são a seu respeito.
Não domino o tempo
porque quanto mais a vida transcorre,
mais perdida eu me sinto.

Não há amadurecimento neste processo.
Há transgressões,
Há tentativas e insucessos,
Há batalhas e fracassos,
Há luta incansável e inglória
pela libertação...

E mergulhos profundos, doloridos...
Recomeços, fracassos...
Retornos... solidões em sua companhia...
Incapacidades para fechar um ciclo.
Encerrada num círculo vicioso.

Agosto/2016

Vera Lúcia

Esperar e confiar...








Foto:

terça-feira, 6 de dezembro de 2016

Areia movediça


Areia movediça

Nas ondas cinzentas da dúvida, é difícil até se mover;
Na neblina esfumaçada da incerteza, o silêncio e as reticências;
A palavra morre interdita, antes de ser pronunciada;
Medo. Não das circunstâncias... mas da ausência!
O corpo domesticado espera... o espírito se move, confuso.
O espirito se inquieta, suspira...
Debate-se na escuridão.
Este é um momento singular...
Porque um abalo sísmico estremeceu as estruturas.
Bem montadas,
Planejadas,
Cuidadosas,
Ajustadas.
E não foi por escolha voluntária.
É preciso remontar. Não se pode destruir.
Não há possibilidade de destruição,
Pela pura e simples incapacidade de deixar de sentir!
Porque é chama, mas infinitamente comburente.
No momento mesmo da combustão, se renova!
Mas o momento enevoa em fumaça...
Não dá escolhas,
Não há alternativas,
E a alma navega na dúvida.
Purgatório do paraíso...
Não se mover,
Não se estraçalhar,
Só vegetar no desespero silencioso.
E há uma eternidade de desesperos sufocados.
Estática congelante que percorre o sangue, adormecendo o ânimo.
Não dizer, só sentir.
Não há alegria no silêncio.
Não há esperança no vácuo dolorido da espera.
Mas se apenas um movimento de brisa agita os cabelos,
Ou as palavras de uma página qualquer... indicando vida,
Há um alvoroço incontrolável, controlado pela superfície,
Que despenteia, aquece, ilumina e só se reflete pelos olhos...
Miragem.
Ilusões que atravessam o sonho, o dia, a realidade, todas as horas.
E os movimentos circulares, intermináveis, sisíficos...
Dão em nada.

Cada vez mais enredada nesta areia movediça que não liberta.

Vera Lúcia
(06/12/2016)

Dois e dois são quatro

Dois e Dois são Quatro

Como dois e dois são quatro 
Sei que a vida vale a pena 
Embora o pão seja caro 
E a liberdade pequena 

Como teus olhos são claros 
E a tua pele, morena 
como é azul o oceano 
E a lagoa, serena 

Como um tempo de alegria 
Por trás do terror me acena 
E a noite carrega o dia 
No seu colo de açucena 

- sei que dois e dois são quatro 
sei que a vida vale a pena 
mesmo que o pão seja caro 
e a liberdade pequena.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Traduzir-se

Traduzir-se

(Ferreira Gullar)

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo. 

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão. 

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira. 

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta. 

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente. 

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem. 

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?


De Na Vertigem do Dia (1975-1980)